No livro La planète des singes, escrito pelo francês Pierre Boulle em 1963, e que serviu de base para as sequências do filme O planeta dos macacos, o autor descreve algumas cenas de conflito violento entre estes animais. O macaco derrotado, em sinal de submissão e como pedido suplicante pela própria sobrevivência, beija a mão do macaco vencedor. Após o gesto, ele é geralmente aceito no grupo, passa a receber e a obedecer as ordens do seu novo líder e, em troca, adquire as vantagens da convivência com quem detém o poder. A submissão se torna, desta forma, uma questão de conveniência.
Na política há, também, quem adote comportamentos semelhantes, especialmente após os resultados das eleições. Em nome da conveniência pessoal e de uma série de facilidades (dinheiro, empregos, favores, maior acesso aos balcões de negócios, espaço para projeção da própria imagem, etc.), beijos são oferecidos, por assim dizer, às mãos de quem alcançou o direito de exercitar esta sombra passageira chamada poder.

Registro da cerimônia do beija-mão na corte carioca de Dom João, um costume típico da monarquia portuguesa.
A atitude não é, certamente, alheia à realidade do exercício da política em nosso país, uma política que, ao que parece, não tem “lados”, não se preocupa com posturas ideológicas, e é mais parecida a uma feira onde o produto vendido é a oportunidade do benefício próprio. Dentro deste contexto mais amplo, a coisa mais natural a ser esperada, embora não necessariamente correta ou inteiramente decente, é que aconteça o gesto de beijar a mão de quem tem o poder.
Penso que esta situação revela a profunda estiagem de crença, de valores e de ideologia, como já afirmei. Não é que algumas pessoas simplesmente esqueçam tudo o que disseram, antes da própria derrota, contra aqueles que foram seus adversários. Na verdade, elas realmente não tinham a densidade de crenças, de valores e de ideologia que pareciam ter. Simples assim. E olhe que muitas delas demonstravam, antes do resultado das urnas, o que podia ser descrito até como asco daqueles que se saíram vitoriosos na disputa.
O que vejo cada vez mais é uma erosão do indivíduo verdadeiramente político em benefício do indivíduo oportunista ou “sabido”, como diria um bom nordestino.
Não se está apelando, aqui neste texto, para uma postura de respeito a algum tipo de polarização política. Até porque a polarização política é burra. A polarização política não pensa, ela adjetiva. Vide o caso do extensivo uso dos termos petralhas e coxinhas para descrever pessoas neste ambiente politicamente polarizado no Brasil, muitas vezes sem nenhuma outra preocupação que não seja a mera rotulação do adversário.
Ademais, é sempre sábio ponderar as atitudes humanas sem esquecer algumas das características mais notáveis do próprio ser humano, a saber, contradição, organicidade e evolução.
Aliás, se trouxermos a questão para o campo do modelo de sociedade que a maioria de nós prefere, uma sociedade democrática, teremos de levar em consideração que há amplo espaço, na democracia, para a mudança de postura, de posição e de opinião. É válido, por sinal, lembrar aqui do que disse Saramago, em 2003, ao periódico espanhol El Correo de Andalucía: “O grande problema do nosso sistema democrático é que permite fazer coisas nada democráticas democraticamente.”
Posto tudo isto, e dada a nossa incapacidade para determinar com perfeita justeza se as mudanças de postura neste período pós-eleitoral são por verdadeira convicção ou mero oportunismo, resta-nos apenas respeitar as escolhas dos outros, embora nos pareça, por mais das vezes, que tudo se resume a macacos beijando as mãos de outros.
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é porque não procurar o “pau” que dá sombra?
Porque não procurar o pau que dá sombra?
Reflexão para um bom domingo.