Deixada no cabaré da Dona Elza, em Quixadá, mulher procura pela mãe vinte anos depois

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A maior parte da história da manicure Antônia Célia Cesário de Souza, 31 anos, natural de Mombaça (Sertão Central), está perdida em Fortaleza. Dizem que mataram e jogaram o corpo, moreno e jeitoso, no mar; que quem vive nessa vida de prostituição tem que ser cega-surda-muda. Dizem só isso. O outro tanto de si mesma são a curta e forte lembrança de quando foi deixada pela mãe no “cabaré da dona Elza”, na periferia de Quixadá.

Era dia, e a mãe tinha passado café. O pai chegou, discutiram como sempre, ele jogou a xícara de café quente na mulher. Foi a última briga. Eva Cesário de Jesus, dez ou 15 anos mais moça que o vendedor de frutas e verduras, arrumou a filha mais velha e mais apegada, Célia, com uma saia rosa e uma blusinha azul, um “chinelo havaiana” e o cabelo feito “maria-chiquinha”. Deixou os dois menores, “ela levou pouca coisa… Eu não tinha brinquedos”, emenda Célia.

A narrativa é de uma menina de quatro anos. Célia tinha essa idade quando a mãe lhe deixou no cabaré, pra ser criada pela sorte. Eva sumiu na madrugada, ia ganhar mais na Capital, um dia voltava. Quem lhe avisou, como se Célia pudesse entender o abandono, foi Elza, a dona do bar, dos quartos e da liberdade. “Eu me lembro de tudo”, reafirma.

Célia não esquece a fome. “Eu não tinha direito a nada, nem comida, nem vestido”, chora. Não esquece o pavor de vir a ser prostituída. Escapou, aos 11 anos, pelo socorro da vizinha do cabaré que, vendo a agonia da menina-mocinha, ofereceu-lhe trabalho em casa de uma família da Capital. Elza, a dona, só deixou Célia ir porque a menina mentiu que lhe pagaria a liberdade com uma cesta básica todo mês.

Em Fortaleza, os patrões perguntaram dos parentes, e Célia lembrou-se de uma tia distante, casada com o irmão do pai, enfermeira em Mombaça. Acharam. Tia Teresinha lhe disse o sobrenome e o tempo: “Até então, eu só sabia que meu nome era Célia. Não sabia que idade eu estava”. Tia Teresinha lhe disse ainda o endereço do pai que, na velhice, também morava em Fortaleza.

João Mulato de Souza e a filha mais velha voltaram a se ver quando Célia tinha 18 anos. Falaram o necessário; Célia, que não era batizada, precisava do registro de nascimento. “Ele nunca me aceitou”, ela queria saber por quê. Mas, desde a última briga com Eva, João calou-se; completou 80 anos e não fala no assunto. Os dois irmãos, criados pelo pai, igualmente, silenciam.

Entre silêncios, Célia quase foi prostituída. Trabalha desde criança. Cria, sozinha, uma filha que completou dez anos e tem muito medo dos tiros que papocam pelos becos da comunidade onde vive-dentro-de-casa. Escreve menos do que lê, estudou para ser manicure. E, até uma cliente lhe falar que ela precisava perdoar a mãe que a abandonou em um cabaré, sem deixar o que comer nem o que amar, a história de Célia era esta meia-página.

Há oito, dez dias, mais do que nunca, Célia procura a verdade do que disseram, que esfaquearam Eva “e tinham rebolado o corpo no mar”, e do que calaram. Célia é o intervalo de vida entre a infância sem brinquedo (sem escola, de maus tratos e de fome) e o que não foi dito, explicado. Ela deseja encontrar a mãe, para poder continuar: “O motivo maior d’eu procurar é saber o porquê que isso aconteceu… Minha libertação é quando eu souber se ela é morta ou viva”.

Fonte: O Povo




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